Num bairro de classe média da cidade, somente de noite, os moradores sempre viam um velhinho empurrando um carrinho de duas rodinhas. Era um senhor grisalho, baixinho e franzino; parecia ter por volta de 75 anos de idade. Em cima do carrinho, ficavam expostas as bugigangas que ele vendia. Eram objetos de várias finalidades: anéis, pentes, escovas de cabelo, chaveiros, porta-copos, porta-guardanapos, talheres, bingas, moedeiros, carteiras, colares, xícaras, lenços de pano bordados, moedas antigas, bibelôs, entre tantos outros. Mas todos tinham defeitos: ou eram arranhados ou lascados, desbotados, trincados, manchados, descascados, remendados, etc. Era muito estranho pois ninguém nunca via o velhinho vender qualquer item. Quando se perguntava para os moradores e transeuntes eles diziam que viam-no com o carrinho mas nunca viam qualquer pessoa ao menos olhando as mercadorias que ele vendia. Se ele nunca vendia seus produtos, então como poderia viver daquilo? Será que tinha outra fonte de renda? Pensavam que ele era aposentado e que vendia na rua só para passar o tempo. Acreditava-se que ele saia pra vender somente de noite para evitar a fiscalização por parte da polícia. Quando passava na rua, ouvia-se ele tocando um pequeno sino e tentando gritar com voz fraca: “Presentes! Presentes para todos os gostos e idades! Presentes! Venham ver!”
Certo dia, era uma sexta feira já quase meia-noite, João, Douglas e Alberto estavam voltando de um bar. Eram três jovens estudantes universitários por volta dos 20 anos que cresceram juntos pois eram vizinhos de porta naquele bairro. Andavam lentamente cantando mole e falando besteiras devido ao alto grau de alcoolização em que se encontravam. Quando viram o velhinho com seu carrinho anunciando os presentes, eles se aproximaram.
--- O que tem aí, velho? --- Perguntou Douglas bulindo com todas as peças do carrinho.
--- Esse cara só vendo porcaria! --- Disse João em tom de menosprezo.
--- Não é porcaria não! É liiiiixooo! --- Concluiu Douglas atirando algumas peças no chão.
O velho começou a olhar pra eles querendo contestar. Alberto se aproximou para interromper. Ele era um homem muito alto e forte e com o peito proeminente na cara do velhinho, disse com prepotência:
--- O que foi, velhote. Tá achando ruim é?
O velho nem falou nada e João deu uma ideia:
--- Aí, vamos jogar isso fora. Afinal, lixo tem que ser jogado fora.
--- Isso mesmo. Lixo é pra ser jogado fora. --- Concordou Douglas.
--- Lixo não é para ser vendido. --- Concluiu Alberto.
--- Não façam isso! Esperem! Eu preciso dos meus presentes para ganhar meu sustento! – Implorou o velhinho.
Os rapazes não tiveram a menor piedade. Pegaram todos os objetos do carrinho e jogaram no bueiro que havia a dois metros do local. Aquela rua ficava no alto de um morro então o acesso à rua de baixo se dava através de uma escada que ficava bem em frente ao bueiro. Juntaram-se os três e ergueram o carrinho levando-o até a escadaria e depois jogaram-no com força. O carrinho caiu na metade da escadaria e rolou mais alguns metros ficando totalmente quebrado, já que era feito de madeira.
O velho se aproximou da escada para olhar. Sentiu profunda angústia ao ver o carrinho destruído. Ele olhou para os rapazes e disse:
--- Vocês não deveriam ter feito isso!
--- Sai pra lá, velho nojento! --- Disse Alberto empurrando o velho com tanta força que o coitado caiu batendo a cabeça no corrimão de ferro da escada. Ele ficou desacordado.
--- Acho que ele desmaiou. --- Disse João.
Douglas se aproximou para verificar. Abaixou-se e tocou no pescoço do velho para verificar seus batimentos cardíacos. Douglas era estudante de medicina.
--- Ele está morto! --- Disse ele.
--- Vamos embora daqui! Rápido! --- Sugeriu Alberto, que fez um gesto para que os amigos corressem.
--- Por aí não! Se a polícia encontrá-lo morto vão vir até nós porque estamos na rua em que o velho está. Vamos por um caminho diferente. --- Sugeriu João.
--- Ele tem razão! E vamos sem correr. Isso também é dar na cara. --- Concluiu Douglas.
João olhou pros lados pra ver se alguém os via. Depois olhou pra escada e disse:
---Vamos por aqui!
Desceram as escadas rapidinho mas sem correr. Foram para a república e continuaram suas vidas como se nada tivesse acontecido. Combinaram de não falar mais naquele episódio.
Nos dias que se sucederam, ninguém comentou sobre a morte do velho. Não houve nota no jornal, televisão, os moradores não comentaram… Tampouco a polícia investigou.
Pouco mais de um mês depois do ocorrido, Douglas estava passando pelo local. Havia uma criança chorando bem no local onde estava o bueiro onde eles haviam jogado as bugigangas do velho. Era uma menina de uns três anos. Ela apontava para o bueiro como se tivesse deixado cair algum objeto se estima lá dentro. Douglas se aproximou e abaixou-se para olhar. Era um pequeno ursinho rosado e brilhante.
--- Não se preocupe que o tio pega pra você! --- Disse ele.
Ele se abaixou e enfiou o braço dentro do bueiro, mas não conseguiu pegar o ursinho com uma mão só pois ele o impelia involuntariamente de um lado para outro. Foi então que ele resolveu enfiar os dois braços e, finalmente conseguiu tirar o ursinho de dentro do bueiro. A menina ficou muito feliz quando pegou de volta seu ursinho. Douglas sujou levemente seus braços com a sujeira do bueiro mas continuou seu caminho para a faculdade.
Chegando lá, lavou os braços e foi para sua aula. Uma hora depois, notou que seus braços estavam muito vermelhos. Pensou que era irritação devido a sujeira do esgoto então lavou-os novamente com bastante sabão. Terminou se assistir as aulas com coceira o tempo todo. Chegando em casa, resolveu tomar um antialérgico, depois jantou e foi pra cama. A coceira ficou descomunal, impedindo-o de dormir. No dia seguinte, ele foi ao médico logo pela manhã. Seus braços estavam roxos e muito inchados. Em vez de coçar, eles doíam.
--- Preciso fazer alguns exames antes de dar um diagnóstico preciso. --- Disse o médico depois de analisar os braços do rapaz.
--- E tem cura? --- Indagou Douglas.
--- Não posso dizer nada a respeito sem antes ter os resultados dos exames em mãos. --- Concluiu o médico entregando a Douglas a receita de uma pomada para diminuir a dor.
A pomada diminuiu bem pouco a dor e o inchaço. Douglas ainda estava sem dormir direito e agonizando com aquela situação. Três dias depois, ele voltou ao médico para ver os resultados dos exames. Seus braços estavam tão inchados que mais pareciam ser as suas coxas. O médico analisou novamente os braços dele e disse:
--- Sente-se!
Minuto de silêncio. A expressão no rosto do médico não era das mais agradáveis.
--- Diga logo, doutor! --- Apressou-se Douglas.
--- As notícias não são boas. --- Silêncio. --- Seus braços estão em processo de necrose acelerada. É causada por um agente desconhecido. Não há antibiótico competente para combater. Se esse agente subir até os ombros vão infectar órgãos vitais inclusive o coração, então você morrerá. A única saída é amputar.
--- O que?! Doutor eu só tenho 19 anos!!
--- Sinto muito. Não há outra solução. Não existe antibiótico conhecido.
Três dias depois, Douglas acordou em uma sala de hospital voltando de uma anestesia. Estava se sentindo bem apesar de tudo mas, sem não tinha os dois braços.
Mais um mês se passou. João havia saído da faculdade numa sexta feira de noite. Sentiu vontade de beber uma cerveja e foi até o bar. Depois de beber o quanto lhe satisfez, voltou para casa passando pela rua onde havia acontecido o episódio com o velhinho. Quando se aproximava da escada, resolveu atravessar pro outro lado da rua. Talvez não quisesse passar onde o velho tinha morrido e lembrar-se do que fizera. A rua estava deserta. Não passava carro algum, não havia sequer algum som. De repente, do nada, um carro veio vindo em sua direção bem na hora em que ele atravessava a rua. Ele correu mas não foi suficiente: o carro o atropelou.
Dois dias depois, ele acordou numa cama de hospital voltando de um longo tempo desacordado. Estava zonzo devido aos medicamentos que o sedaram. Tentava se lembrar do que havia acontecido.
A enfermeira entrou e ele perguntou com dificuldade:
--- O que houve comigo? Por que estou aqui?
--- Você foi atropelado. Agora repouse. Depois você terá mais informações. --- Disse a enfermeira.
--- Eu quero falar com o médico!
--- Você falará quando puder. Agora descanse. --- Concluiu ela injetando sedativo no soro dele.
Mais tarde, naquele mesmo dia, João já se sentia melhor, sem os efeitos do sedativo mas estava cochilando quando a enfermeira entrou com o médico. Ele acordou com o barulho da maçaneta. Quando viu o médico, de imediato se ajeitou na cama e espantou-se ao sentir algo diferente com seu corpo. Muito assustado, ele perguntou:
--- Doutor! O que aconteceu comigo? Onde estão minhas pernas? --- Perguntou ele chorando.
--- Tivemos de tirá-las senão você morreria. O acidente danificou sua pelve. Não ouve outro jeito. --- Explicou o médico.
--- Meu Deus! --- Gritou ele angustiado.
--- E isso não é tudo. Você tem uma doença degenerativa nos músculos dos braços. Em pouco tempo você não conseguirá nem erguer um talher. Terá de ser alimentado por alguém.
Algumas semanas depois, Alberto estava descendo as escadarias com sua namorada. Era uma moça que ele já namorava fazia dois anos. Pretendiam certamente se casar depois que ele terminasse o curso na faculdade. Alberto rapidamente teve um flash de lembrança do carrinho do velho todo quebrado naquelas escadas mas achou melhor mudar de pensamento. Alguns meninos jogavam bola no alto da escada e deixaram a bola cair. A bola foi rolando e, quando passou perto de Alberto e a namorada, Alberto pegou a bola para arremessar para os meninos. Assim que ele arremessou a bola, ainda olhando pro alto da escada, sentiu uma luz forte em seus olhos. Era como se um raio de sol mais forte ofuscasse sua visão. Por um segundo, ele perdeu o equilíbrio e caiu batendo a cervical no corrimão de ferro da escada. Caiu imediatamente no chão desacordado.
Quase dez dias depois, ele acordou na cama de um hospital com sua mãe do lado.
--- Mãe! O que houve? Por que estou aqui?
--- Filho! Que bom que acordou! Você ficou inconsciente por quase dez dias. --- Explicou ela.
--- Por que eu não sinto meu corpo? --- Perguntou ele depois de tentar mexer-se.
Ela ficou sem fala. Não conseguiu contar-lhe.
--- Eu já volto! --- Saiu.
Minutos depois, o médico entrou no quarto levando-lhe as notícias.
--- Você teve fratura na coluna vertebral que danificou sua medula espinhal. Não poderá mais mexer qualquer parte do seu corpo do pescoço para baixo. Eu sinto muito. --- Saiu.
Alberto começou a chorar baixinho. Chorou por muitas horas mais. Quando sua mãe estava perto, tentava não chorar mas quando ela saia ele voltava a derramar lágrimas. Sabia que ainda era muito jovem para viver naquela situação. E estava quase concluindo seu curso… queria se casar… Sentiu esperança em sua namorada. Pediu para sua mãe ligar para a moça.
--- Ela esteve aqui no dia seguinte à sua cirurgia. --- Disse a mãe dele.
--- Ela perguntou como eu estava?
--- Sim, perguntou. O médico disse qual era a sua situação.
--- E depois de saber ela não voltou mais aqui. --- Disse ele já entendendo tudo. A mãe dele ficou em silêncio. --- Já entendi.
A amizade dos rapazes ainda era forte. João fora convidado por Alberto para ser seu padrinho de casamento e Douglas seria padrinho de seu primeiro filho. Quando estavam todos com a saúde estabilizada, eles sempre se reuniam na casa de Alberto de noite para conversar. Evitavam falar sobre o que fizeram com o velhinho o quanto podiam. Mas chegou um dia que João não aguentou pois estava sufocado com uma dúvida na cabeça que o consumia:
--- Eu tenho que falar uma coisa. Vocês têm evitado falar nisso mas não dá mais! Tenho que contar.
--- Você não vê nossa situação? Quer piorar ainda mais as coisas? --- Interrompeu Douglas.
--- Deixa ele falar. Nada do que ele disser vai mesmo mudar nas nossas vidas. --- Disse Alberto.
--- No dia em que eu fui atropelado, não havia uma mosca na rua. Silêncio total. Não tinha trânsito, carros... nada! Não tinha como um carro se aproximar sem eu ter ouvido sequer um único ruído de longe. --- Chorando. --- Foi muito estranho.
--- Uma coisa foi comum para os nossos problemas: todos aconteceram no mesmo lugar. E vocês sabem o que aconteceu naquele lugar… --- Concluiu Douglas.
--- Não vamos lembrar disso agora! Chega dessa conversa! --- Disse Alberto nervoso.
--- Você não quer encarar a verdade. --- Falou João abaixando a cabeça.
--- Que verdade! Que estamos com nossas vidas arruinadas? Isso já encarei. --- Disse Alberto irritado que foi interrompido por Douglas:
--- Gente! Ouçam!
Havia uma voz longínqua que vinha vindo. Pela janela.
--- O que é isso? --- Indagou João.
--- O que é? --- Perguntou Alberto.
Depois de discerniram, ficaram de queixo caído.
--- Douglas, olha pela janela para confirmar! --- Disse Alberto com o coração a mil.
Douglas puxou a cortina com os dentes e olhou:
--- Vocês não vão acreditar: é o velhinho que vende bugigangas.
--- Que velhinho? --- Indagou João.
--- Como que velhinho? Quer que eu te conte a história toda? --- Disse Douglas.
--- Não pode ser! --- Exclamou João.
--- E tem mais: ele está empurrando o mesmo carrinho com as mesmas bugigangas. --- Concluiu Douglas.
Todas as noites, os jovens rapazes tiveram de ouvir a doce e rouca voz do velhinho anunciando a venda de seus presentes!
Fim